A lembrança mais recorrente que tenho da minha falecida avó Soei é a palavra "obrigada". Chinesa de sangue e de berço, morava no Brasil há várias décadas. Com sotaque carregado e ideias independentes, ela gostava de conversar. Refletindo hoje sobre o que ela falava, percebo que era tudo bastante influenciado pelas religiões orientais, que ensinam a pessoa a ser grata por tudo. Ela manteve essa bela característica, mesmo que já houvesse se convertido ao cristianismo há tempos e aprendido a ler na Bíblia de João Ferreira de Almeida, toda grifada por ela própria.
Ela falava "obrigada" com tanta frequência e em situações tão inusitadas, que era quase impossível não achar aquilo engraçado. Eram objeto de sua gratidão, até mesmo, os objetos inanimados. Por exemplo, "obrigada" à panela, por não queimar a comida. Outras situações também eram motivo de agradecimento, mesmo que não parecesse. Ao falar de uma situação ou pessoa que a tinham deixado aborrecida, como qualquer um de nós, ela passava algum tempo reclamando. Meia hora que fosse de reclamação, não importava; ao final da conversa, ela dizia "obrigada!", meio contrariada, à pessoa ou à situação que tinham lhe causado transtorno. E logo iniciava uma oração das mais singelas e tudo aquilo passava.
Não conheço ninguém que faça isso, além dela.
Como minha avó era uma pessoa muito simples para demonstrar sarcasmo, eu não interpreto esse "obrigada", que ela dizia contrariada, como algo intencionalmente irônico ou amargurado. Era, apenas, a manifestação do anelo de permanecer grata por todas as situações, ainda que estivesse aborrecida. Era a constatação de que, por mais décadas que já houvesse vivido, ainda restava aprender gratidão por aquela situação específica, aborrecedora, fora do comum. Minha avó não era perfeita, e tinha seus defeitos, como qualquer um de nós; uma coisa, porém, é certa: ela estava sempre aprendendo.
E quando penso em aprendizado, penso em minha pequena filha. Penso que só posso ensinar gratidão a ela se eu mesma for grata. Que as palavras que ela mais capta de mim são as menos ditas. Então eu sou grata também, ao menos tento. Grata pelo meu cansaço, pelos meus projetos não realizados, por todas as situações que já me aconteceram e me desviaram do que eu havia planejado. Grata, mesmo contrariada. Grata, mas não conformada. Inconformada, mas não infeliz. Porque é assim que devo ser e não resta outra maneira.
Aproveitando que estamos na fase de aprender palavras, ensinei-a a falar a palavra "obrigada", quando recebe alguma coisa em mãos, qualquer coisa, um pedaço de pão, um brinquedo, um agrado. Há alguns meses ela já tem praticado isso. Hoje ela me agradeceu por eu ter tirado seus sapatos, pois sentia calor nos pés. Achei bonito, mesmo ela não sabendo ao certo o significado disso. Por enquanto, é só para mim que subsiste esse significado. Quando ela repete "obrigada", fico satisfeita de estar transmitindo algo que aprendi observando a minha avó. Sou mãe, sou agora esse canal entre gerações, entregando a ela o que recebi. E assim posso continuar minha vida, contemplando nessa nova geração a antiga gratidão ensinada pela minha saudosa avó.
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