quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Tempo é amor

A mãe se levanta de madrugada todos os dias para amamentar o bebê. Um dia se vê acordada sozinha naquele mesmo horário, porque o bebê cresceu e já dorme a noite toda. Mesmo assim, ela vai ao berço velar o sono do nenê e ajeitar suas cobertas.

A gestante passa semanas em repouso, para evitar um parto prematuro. Enquanto isso, procura usar o tempo de maneira proveitosa, mantendo a mente tranquila e longe das ansiedades. Ela gostaria de sair de casa e ver gente, mas não pode. Um dia, vê a si mesma na frente do espelho, depois de muito tempo e demora um pouco a se reconhecer. A vida parece um sonho acordado. É que os gêmeos já nasceram. E ambos estão chorando nesse exato momento.

Em outra madrugada, alguém anda pela casa com cuidado para não pisar nos brinquedos espalhados pelo chão. Ela vai à cozinha encarar uma pilha de louças sujas, que ficaram esperando por uma lavagem o dia inteiro. Ela se lembra de ir à área de serviço deixar as roupinhas de molho com sabão de coco, para serem esfregadas e enxaguadas naquela mesma madrugada. Tem manchas que custam sair, ela suspira. E começa a esfregar uma panela engordurada. No quarto, as crianças dormem.

Em toda casa, há sempre alguém cujo tempo é utilizado em favor de outras pessoas.

A mãe sem ajuda.

Com isso ela aprende o que é, na prática, o verdadeiro amor.

Às vezes esse aprendizado a faz sofrer. Às vezes, não, porque enquanto executa todas essas tarefas, ela transporta seus pensamentos para outro lugar.

O rosto de seus filhos. 

Sorrir é inevitável, mesmo com o cansaço tomando conta.

Ela podia tirar um dia de folga, em casa ou em um passeio, mas em vez disso, cochila sentada, tentando assistir uma palestra. O palestrante está falando sobre amor e paciência. Com sono, ela não consegue prestar atenção. O que está escrito nos livros mencionados pelo palestrante é muito bom e valioso, mas não o suficiente para atestar uma verdade inquestionável.

Tempo é amor.

E embora muitos digam que te amam, preste atenção nisso apenas quando eles gastam tempo com você. Como? 

Não sei. 

Tempo, apenas, te ouvindo, sobre um assunto que talvez não seja do interesse deles, mas ainda assim resolveram doar um tempo para você falar, sem culpa de estar falando muito ou tomando o tempo dos outros.

Tempo, apenas, tentando entender. Entender sua frustração, seu cansaço ou seu tédio generalizado. Sem julgamentos pelo fato de você não dar importância aos ensinamentos teóricos sobre amor e paciência. 

Porque, agora que você é mãe, a importância de tanta teoria é apenas relativa. Em casa há crianças precisando brincar ao lar livre, usar roupas limpas, aprender a comer frutas e verduras, escovar os dentes corretamente e dormir no horário certo. E fazer tudo isso acontecer é tarefa sua.

Como alguém pode pensar que você sabe pouco sobre amor e paciência?

Como alguém pode pensar que você não tem o que ensinar sobre amor e paciência?

O próprio tempo que você gasta tentando explicar conceitos tão básicos já mostra que amor é tudo o que você tem a oferecer. Por força do hábito, você tem amor por essa pessoa que não te entende. Por essa pessoa que pensa que veio te ajudar, mas que precisa de mais ajuda que você, sem nem saber disso. Amor por essa pessoa que vai voltar para o lugar de onde veio, sem mudança alguma. Amor por ela, que continuará teorizando sobre o amor, sentada em algum lugar, escrevendo ou falando a partir de sua zona de conforto.

Eu não vejo amor nas palavras, nas frases de efeito, nos dizeres populares e proverbiais; não tanto amor quanto aquele que vejo nas mães que descrevi, cujas madrugadas são tomadas pelas tarefas ou pela insônia das preocupações.

Com seus filhos, filhas, netos, netas.

Com suas amigas mães e seus filhos, a quem você tem carinho como se fossem seus.

Com qualquer mãe desconhecida, até com aquela do notíciário, cujo retrato do filho desaparecido fez seu coração apertar de preocupação.

Tarde da noite, é por todos eles que você faz uma oração. Mesmo que esse tempo de insônia venha te cobrar no dia seguinte.

Sobre o amor e a paciência, você pode não saber tudo. Mas ao contrário de muitos, está aprendendo de verdade.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Desescolarização



Ando pesquisando sobre desescolarização.

Escola é lei no Brasil, alguns dirão.

Eu sei.

Mas as leis não nos impedem de pensar, nem de imaginar um caminho diferente para nossos filhos trilharem.

Outros podem dizer que a desescolarização tornará as crianças preguiçosas.

Foi assim que também reagiram à ideia de escola, no início. Tenho quase certeza de que quando apareceram professores nas áreas rurais desse Brasil, juntando as crianças para ensiná-las o beabá diante de uma lousa, muitos disseram: "Mas isso é loucura... essas crianças estão perdendo tempo, vão ser preguiçosas, não vão gostar de trabalhar..."

Então, a escola virou lei.

E as crianças, sejam as que têm espírito artístico, matemático, músico ou literário, não importa, todas são igualmente obrigadas a cumprir a grade curricular designada pelo Estado, bem como a carga horária correspondente, sendo qualificadas (ou não) segundo as notas obtidas nas avaliações aplicadas pelos professores.

Sim, por aqueles mesmos professores que, um dia, abriram os olhos dos meninos para o esclarecimento das letras, dos números, das operações matemáticas, das figuras de linguagem, das ciências naturais, dos contornos geográficos e dos acontecimentos históricos.

Enquanto a escola designada pelo Estado é burocrática e apassivadora, obrigando os professores a transmitirem um conteúdo previamente determinado, garantindo que os alunos o decorassem, a escola pioneira, original, dava ao aluno a chance de nomear o que ele já conhecia, na prática, no meio onde vivia.

Assim.

A escola tradicional ensina o aluno a decorar as características dos animais mamíferos. E cobra isso na prova. Mas a escolinha rural pioneira informava ao aluno que a vaquinha ordenhada na fazenda onde ele mora é um mamífero. Essa útil informação ele nunca vai esquecer. A escola existia para servir a realidade onde estava inserida. Ela ajudava o aluno a entender essa mesma realidade, sem a necessidade de o transportar a outra. 

Por outro lado, a escola tradicional que frequentamos nos tira da realidade onde estamos, nos coloca em outro nível de linguagem técnica e classificações de coisas e pessoas, arrebanhando cada pequeno e grande aluno para o mesmo questionamento:

"Para que vou aprender isso?"

Sem resposta, devolve-se ao aluno outra pergunta:

"Você não quer passar (de ano/no vestibular/no concurso)? Então, aprende."

Logo, a informação não é para aprendizado. Ela é inútil, exceto como ferramenta para te alçar a outro nível. Qual? Da escola para a faculdade. Da faculdade, para o diploma. Do diploma, para a vida.

Que vida? Aquela que você quer ter quando crescer, ora.

Mas a criança de ontem não se lembra mais do que queria ser quando crescesse.

Ela queria ser astronauta, mas não consegue gostar de Física. Não entende para que servem as Leis de Newton. Ela queria ser artista, mas a aula de Educação Artística é só a cada quinze dias. Fica frustrada. Ela queria ser veterinária, porque ama os animais, mas não consegue decorar a toda a classificação zoonômica e tira notas baixas em Biologia. Ela queria ser atleta, mas o professor de Educação Física colocou todo mundo para jogar futebol e não há atletismo. Ela queria ser poeta, mas a maneira como as correntes literárias lhe foram apresentadas só a fez detestar Literatura. Ela queria dançar, mas essa atividade só acontece uma vez ao ano, na quadrilha da festa junina.

Então, a criança chega à triste conclusão de que não servia para a profissão que sonhava. 

Mas isso não é verdade. Foi a escola que a fez acreditar nisso.

Sem perceber, a criança escolarizada assume uma identidade que não é a sua própria. Ela conclui, tristemente, que não gosta de matemática; que não sabe fazer redação; que ciências não é sua praia; e que odeia artes e geografia. Pensa que história é chato porque os nomes daquelas pessoas e datas não lhe interessam em nada. Aprende que pensar é inútil. Que é mais importante não aborrecer os professores com perguntas, para não ser prejudicada depois com a nota. Que todos, professores e alunos, estão cansados e esperando que o ano acabe. Para começar a mesma tediosa tarefa ano que vem. Tudo de novo, até acabar e começar de novo. E os anos vão se passando nessa mesma rotina.

A criança é esquecida. Ela só existe para manter o sistema de notas e avaliações funcionando, enquanto seu espírito matemático, artístico, literário, científico, morre por dentro.

Um dia ela vira um adulto com diploma em qualquer coisa e não sabe o que fazer da vida. Ela aprendeu que existe para manter o sistema funcionando.

A desescolarização rompe essa lógica que alimenta o sistema com a passividade dos alunos. Com a desescolarização, a criança tem liberdade para aprender aquilo que mais interessa à sua própria vocação. E como ela vai saber que vocação é essa?

Simples. Vivendo e estudando ativamente.

A criança gosta de linguagem. Se interessa em aprender palavras novas. Sua tarefa, então, é pesquisar palavras no dicionário. Descobrir sua origem, até mesmo, a tradução de cada palavra para outras línguas. Agora ela está estudando uma língua estrangeira. Então, um dia, ela se depara com um livro de um escritor estrangeiro. É um suspense que se passa em um submarino. Ela pesquisa sobre como são feitos os submarinos. Aprende como eles imergem e emergem, conforme as leis da física. Agora ela está estudando física. Ela aprende o nome do físico que enunciou aquelas leis. Lê sua biografia e descobre que ele viveu em determinada época. Começa a pesquisar sobre o contexto político em que esse cientista viveu. Agora ela está estudando história. E geografia.

A criança vai ser escritora? Tradutora? Engenheira? Cientista, historiadora, geógrafa? Sim. Em cada momento do estudo ela vai querer ser uma coisa diferente. Um dia, com sua personalidade formada, ela vai escolher, dentre todas as profissões, a que mais condiz com seus objetivos. E vai seguir essa carreira. Como? Vivendo e estudando ativamente.

A ideia da desescolarização não é fechada, mas aberta. E o mais importante, ela é centrada no aprendizado ativo do aluno, e não em sua passividade.

Como mãe, eu gostaria muito de ver essa ideia sendo implementada de alguma forma.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Mamãe sabe mais [?]

"Mamãe sabe mais". Essa frase é uma tradução do original "Mom knows better!", citação do longa metragem de animação "Enrolados", da Disney, que reconta a história da princesa Rapunzel. Aqui em casa concordamos que esse é um dos melhores desenhos que já vimos. É engraçado, sim, com humor apreciável por adultos. Eu soube que com esse desenho os produtores buscaram alcançar o público infantil masculino, que tem natural rejeição ao mundo das princesas. Apesar de não ser um dos mais novos, fica muito atrás de "Frozen", que não chegou a empolgar ninguém aqui de casa.

Eu lembrei dessa frase porque hoje vi na TV um programa tentando dar algumas orientações sobre cuidados e tratamento de assaduras em bebês. Coincidentemente, na minha linha de notícias do Facebook, várias mães blogueiras hoje estão falando sobre o mesmo assunto. 

Mais coincidência ainda, tudo isso conta com o explícito merchandising bem aplicado da empresa Jonhson & Jonhson, que tem feito propaganda mais ostensiva de sua linha de produtos infantis. Talvez, pelo que tenho acompanhado, se trate de uma contra-ofensiva à recente campanha da marca Dove Baby, que acaba, também, de se lançar no mercado utilizando uma abordagem mais ou menos parecida.

Repare que há algumas semanas passava na TV (aberta e fechada) um filminho da Dove chamado "Mães reais", mostrando a mãe com o bebezinho chorando no supermercado e uma vovozinha com olhar de reprovação. Incoerências: um bebê novinho daquele jeito chorando no supermercado é super normal, não se trata da birra que vemos quando uma criança grande fica se jogando no chão; a vovozinha, na vida real, não faria aquele olhar de reprovação para um bebê tão fofo. Duvido muito.

Aí depois a propaganda mostra a mãe super cansada e deitada no chão, cuidando do bebezinho que tenta ficar em pé. Depois aparece outra mãe, cheia de olheiras, com o bebê no colo e, ao fundo, uma tábua de passar roupa com uma pilha de roupas amarrotadas. 

Tão light, meu Deus... imagina uma mãe de verdade nessa vida, que tenha um bebezinho para cuidar, lembrando de passar alguma peça de roupa. Ela nem sabe mais onde está o ferro.

Isso não existe. É o marketing querendo nos fazer crer que somos objeto de alguma empatia.

Quero ver aparecer no filme uma mulher real no pós-parto, com a barriga toda flácida e descascada. Ou o som de um bebê que chora de cólica a noite toda. Mas isso nunca vai acontecer. Senão ia parecer um filme de terror B e não serviria para vender nenhum produto.

Mas voltando ao assunto, quando eu vi essas propagandas, me lembrei de que sei tudo sobre assaduras. Tudo. E também sei tudo sobre amamentação. Só que não quero ser o tipo de pessoa que fica expondo para todos tudo o que sabe sobre determinado assunto. Isso é muito chato.

Há alguns anos, estive em uma roda de conversa de mães, uma única vez para nunca mais, na minha vida pré-maternidade. Eram mães com filhos de todas as idades, e sem exagero algum, passaram mais de uma hora conversando sobre as fezes que seus filhos deixavam nas fraldas, quando as usavam. Eu fiquei impressionada que se lembrassem disso. Quantidade, cor, cheiro, consistência, tudo era objeto de descrição e análise, comparação e debate. Na época, pensei, elas deveriam se sentir as melhores mães do mundo por saber tudo sobre o nojento assunto. Por outro lado, também fiquei pensando: como fica a intimidade dos filhos dessas mulheres (alguns já adolescentes, na época), revelada ao público, assim, sem a menor cerimônia?

"Mamãe sabe mais?"

Certo. 

Mas para o bem de seus filhos, tem coisas que é melhor você fingir que não sabe ou então se esqueceu.

Digo, ainda, que para o seu próprio bem é melhor esquecer as piores coisas.

Mesmo assim, se alguma mãe quiser me consultar a respeito dos meus conhecimentos maternos, me chame inbox. Estou disponível, sim, para ajudar quem precisa. Também tenho o maior prazer em compartilhar experiências com minhas amigas mães, um grupo fechado e seleto, de confiança. Que me ajudou muito.

Só publicamente é que revelo saber menos, bem menos, do que realmente sei.

Mamãe sabe demais.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Apaixonada ou indiferente?

Ser mãe de um bebezinho de três, quatro meses é, sei lá, como estar apaixonada! Em estado de graça, você está contemplativa, no auge da inspiração, tendo nos braços um pequeno milagre divino, a coisa mais linda do mundo, um ser fofíssimo, uma nova vida!

Naquela época, o pediatra recomendou que eu saísse com ela para tomar sol todas as manhãs, e foi o que comecei a fazer. Quando saía, empurrando o carrinho com a neném dentro, sentia tudo ao meu redor com uma intensidade diferente: o céu era mais azul, o sol mais brilhante, o ar mais puro, enfim... um sentimento quase ufanista!

Quando alguém me perguntava, eu falava detalhadamente sobre as novidades da bebê, sobre como tudo aquilo me maravilhava. Cada pequena coisa era extraordinária e perfeita.

Eu fiz muita poesia na época. Eu me superei em lágrimas e declarações de amor. Tenho certeza de que muitas pessoas se cansaram ou enjoaram de me ver orbitando em torno dessas emoções maternas. Na época, nem liguei para o que pensaram, como até hoje também não ligo.

Aí tanta coisa vai acontecendo, uma por cima da outra... de fato, a experiência da maternidade vai sendo construída em camadas. As camadas recentes vão cobrindo as outras, e isso às vezes ocorre com uma velocidade grande, não de meses, mas de semanas e até dias.

Outro dia ela ainda estava de bruços, firmando o pescoço, aí... caramba, já engatinhou, que espertinh... olha! Está andando agora... não... já está correndo! Ei, quem ensinou essa menina a chutar bola?

Esses dias ela falou mamã... peraí, gente. Ela sabe o nome dos animais e... como ela sabe o nome disso... opa... já está contando até dez?

A verdade é que, mais ou menos a partir dos seis meses, a velocidade do desenvolvimento da criança nem te dá tempo suficiente para se surpreender. É correr atrás do ser, curtindo ao máximo cada momento, porque o próximo passo já vai superar o atual e acontecerá daqui a pouco. Literalmente.

Há algumas semanas eu encontrei na vizinhança a mãe de um bebezinho de quatro meses. Maravilhada com o mundo e com a vida, ela me perguntou se eu cuidava integralmente da minha pequena. Quando eu disse que sim, ela começou a falar sobre a maternidade ser um privilégio, uma bênção a ser cultivada, e muitas coisas lindas. 

Por mais que concordasse com ela, eu não podia ouvi-la com atenção, pois estava mais preocupada em evitar que minha filha mexesse num formigueiro, ou pisasse na sujeira do cachorro, ou saísse correndo para a rua, enfim... muitas coisas passavam pela minha cabeça enquanto eu tentava me concentrar no que aquela mãe dizia. Eu saía e voltava pra conversa, ao mesmo tempo em que corria atrás da minha pequena andante, falante e exploradora da natureza.

Aí depois que me despedi da mulher, pensei, tomara que ela não tenha percebido que eu estava quase indiferente ao que ela dizia sobre maternidade, por mais lindo que fosse...

E também pensei: mas peralá, né, poetizar com um bebê quietinho e cheirosinho nos braços até que é fácil...

Eu entendo, porque também já estive nessa posição.

E hoje também entendo as mães que eram quase indiferentes ao que eu dizia no início, porque elas já estavam vivenciando outras coisas, coisas que já tinham superado aquilo que eu contemplava na época.

E se antes eu estranhava essa indiferença, atualmente a vejo como um bom sinal, um sinal de que as crianças crescem, evoluem, e de que as mães acompanham esse crescimento. Ainda há deslumbramento, mas ele vai ficando normal.

Mesmo assim, não duvide que cada mãe, à sua maneira, ainda é capaz de relembrar a poesia daqueles dias mágicos, em que os filhos ainda são apenas presentinhos de Deus, milagres que podemos pegar, apertar, beijar e cheirar. Sublimes.

Aproveito o ensejo para dizer que entendo perfeitamente as mães que ficam com vontade de ter outro bebê, assim que o primeiro cresce.

É como estar apaixonada.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Ensine gratidão

A lembrança mais recorrente que tenho da minha falecida avó Soei é a palavra "obrigada". Chinesa de sangue e de berço, morava no Brasil há várias décadas. Com sotaque carregado e ideias independentes, ela gostava de conversar. Refletindo hoje sobre o que ela falava, percebo que era tudo bastante influenciado pelas religiões orientais, que ensinam a pessoa a ser grata por tudo. Ela manteve essa bela característica, mesmo que já houvesse se convertido ao cristianismo há tempos e aprendido a ler na Bíblia de João Ferreira de Almeida, toda grifada por ela própria.

Ela falava "obrigada" com tanta frequência e em situações tão inusitadas, que era quase impossível não achar aquilo engraçado. Eram objeto de sua gratidão, até mesmo, os objetos inanimados. Por exemplo, "obrigada" à panela, por não queimar a comida. Outras situações também eram motivo de agradecimento, mesmo que não parecesse. Ao falar de uma situação ou pessoa que a tinham deixado aborrecida, como qualquer um de nós, ela passava algum tempo reclamando. Meia hora que fosse de reclamação, não importava; ao final da conversa, ela dizia "obrigada!", meio contrariada, à pessoa ou à situação que tinham lhe causado transtorno. E logo iniciava uma oração das mais singelas e tudo aquilo passava.

Não conheço ninguém que faça isso, além dela.

Como minha avó era uma pessoa muito simples para demonstrar sarcasmo, eu não interpreto esse "obrigada", que ela dizia contrariada, como algo intencionalmente irônico ou amargurado. Era, apenas, a manifestação do anelo de permanecer grata por todas as situações, ainda que estivesse aborrecida. Era a constatação de que, por mais décadas que já houvesse vivido, ainda restava aprender gratidão por aquela situação específica, aborrecedora, fora do comum. Minha avó não era perfeita, e tinha seus defeitos, como qualquer um de nós; uma coisa, porém, é certa: ela estava sempre aprendendo.

E quando penso em aprendizado, penso em minha pequena filha. Penso que só posso ensinar gratidão a ela se eu mesma for grata. Que as palavras que ela mais capta de mim são as menos ditas. Então eu sou grata também, ao menos tento. Grata pelo meu cansaço, pelos meus projetos não realizados, por todas as situações que já me aconteceram e me desviaram do que eu havia planejado. Grata, mesmo contrariada. Grata, mas não conformada. Inconformada, mas não infeliz. Porque é assim que devo ser e não resta outra maneira.

Aproveitando que estamos na fase de aprender palavras, ensinei-a a falar a palavra "obrigada", quando recebe alguma coisa em mãos, qualquer coisa, um pedaço de pão, um brinquedo, um agrado. Há alguns meses ela já tem praticado isso. Hoje ela me agradeceu por eu ter tirado seus sapatos, pois sentia calor nos pés. Achei bonito, mesmo ela não sabendo ao certo o significado disso. Por enquanto, é só para mim que subsiste esse significado. Quando ela repete "obrigada", fico satisfeita de estar transmitindo algo que aprendi observando a minha avó. Sou mãe, sou agora esse canal entre gerações, entregando a ela o que recebi. E assim posso continuar minha vida, contemplando nessa nova geração a antiga gratidão ensinada pela minha saudosa avó.